Dizem muitos teóricos que a (boa) literatura não tem propriedades que permitem defini-la enquanto tal, que os textos podem passar a ser considerados excelentes ou deixarem de ser excelentes, de acordo com convenções, normas e crenças historicamente determinadas. Sustentam, portanto, que os textos que constituem o cânone literário - as "grandes obras" - não têm qualidades intrínsecas, mas apenas o favor de comentários que as vão continuamente valorizando, que lhes vão dando atenção.
De facto, qualquer tentativa de explicar quais são as marcas distintivas de um bom texto literário é tarefa difícil (impossível?), inglória e desnecessária. Mas uma coisa tenho como certa: a preocupação estética do autor em relação à forma como diz o que tem a dizer, que conduz, nos casos felizes, à boa qualidade dos textos nada tem que ver com o consenso da "comunidade interpretativa", quase 100% orientado pela crítica (jornalística, ensaística e académica, segundo a divisão de van Rees em "How a Literary Work Becomes a Masterpiece").
Acontece com a literatura (socialmente aceite enquanto tal) o mesmo que com qualquer outra forma de arte: um artista pode pôr os seus excrementos dentro de uma lata com o rótulo "merda d'artista" e vendê-la por quantias exorbitantes. Porque a crítica, e depois a sociedade, entendeu valorizar essa"afronta". Mas qualquer indivíduo tem o direito de se negar a considerar esse objecto como uma obra de arte - do mesmo modo que pode considerar que é arte um produto "caseiro" que ninguém mais no mundo viu ou verá, muito menos apreciará enquanto arte (se a "merda" posta dentro de uma lata for minha, ninguém a quer nem oferecida, claro).
Do mesmo modo, a (boa) literatura, a que merece ser lida, relida e transmitida de geração em geração, para que não caia no esquecimento, é um conceito que tem duas vertentes: a social, que diz respeito ao tal consenso, àquilo que a instituição literária determina que é literatura; e a individual, que só respeita a cada um de nós, na sua forma particular - privada, mesmo - de ler e de apreciar o que lê (ou seja, de construir o seu cânone pessoal).
E não me venham dizer que qualquer texto (mesmo o mais merdoso) pode ser considerado excelente, se a comunidade de académicos e críticos assim o entender. Há génio, há originalidade, há sabedoria, há elegância, há força, há subtileza, há profundidade num bom texto (estou a ler o Dom Casmurro de Machado de Assis e apetece-me recomendá-lo a toda a gente). Se não há num texto nenhuma dessas qualidades, e mesmo assim o texto é considerado notável e se torna um best-seller, é porque alguém anda a querer fazer dos outros parvos. Ou porque muitos de nós o somos mesmo.
Como sabe, eu não tenho formação específica em literatura. Li muita ficção antes de me dedicar à leitura de ensaios de quase todo o tipo, com especial pendor para a política, a sociologia, a estratégia, a antropologia, as relações internacionais e, a "minha" amante de todos os tempos, a História (tive de escrever com maiúscula inicial... era imperdoável se o não fizesse!).
ResponderEliminarMesmo não sendo "especialista" em literatura, julgo ter uma opinião sobre o tema da sua excelente reflexão de hoje. Aí vai.
Não, não concordo nada que seja a crítica a estabelecer o paradigma da "boa" literatura e da "má". Em síntese, para mim, julgo que uma obra é boa se satisfizer a alguns parâmetros, a saber:
a) elegância da escrita;
b) conteúdo intemporal;
c) enredo atractivo;
d) personagens com fundo verosimilhante;
e) estrutura narrativa lógica;
f) leitura fácil, mas não facilitada, e sem facilitismos.
Creio que estes são, de repente, os limites que eu mesmo encontro para definir um livro de ficção (se preferir, utilizando um termo da teoria da literatura), um texto poético, como obra de arte capaz de resistir ao tempo e aos gostos ou modismos.
Mas isto dava para uma longa conversa, se fosse possível, à volta de uma mesa, com um café ou um copo de refresco, num ambiente aprazível e, de preferência, calmo, com uma boa vista de mar, por exemplo. O que acha? O que acha de tudo, naturalmente!
Dava, dava... e dará, quando quiser! No entanto, os seus parâmetros serão sempre os seus parâmetros. O que se ensina nas escolas, por exemplo, não é o "cânone pessoal" dos professores, mas o cânone escolar, seleccionado em função dos autores considerandos grandes e a conhecer. Felizmente, porém, muitos deles (eu diria quase todos) exibem as qualidades que enumerou tão lucidamente.
ResponderEliminarEstou a reler as "10 teses" de Aguiar e Silva sobre o ensino da literatura e deparo com uma definição de texto canónico que me fez lembrar de si (decerto concorda com ela). Aqui vai: «textos modelares pela utilização da língua portuguesa, pela beleza das formas, pela densidade semântica, pela originalidade, pela riqueza e pela sedução dos mundos representados».
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