sábado, 6 de junho de 2015

Defesa indefesa

Entreabrindo a porta da sala, o orientador cumprimentou-me, parecendo aliviado por eu ter aparecido a horas. Perguntei, ingenuamente, se os outros membros do júri já tinham chegado. "Claro que já chegaram, já tivemos uma reunião", esclareceu ele, divertido com a minha ignorância destas situações. Depois disse que se ia "só vestir" e que já me chamavam. Fiquei admirada, pois não pensei que haveria essa formalidade ali - pelo menos não me recordava de ter visto o júri de beca na última defesa a que assistira.
Mas não tive muito tempo para pensar nisso, claro. Daí a nada fui convidada a entrar na sala - e expressamente instruída a fazê-lo antes, e não depois, dos membros do público (marido, pais, irmã e uma amiga). Os ilustres membros do júri ali estavam, sentados, e observaram-me com interesse, enquanto eu me dirigia ao meu lugar. Pareceu-me que um deles me olhou com genuína surpresa, como quem acha que a figura não condiz com a escrita. Sentei-me, tirei a tese da pasta e coloquei-a em cima da mesa, pus umas folhas A/4 à minha frente, bem como a caneta, e pousei a mochila no chão. A Presidente, que foi minha professora há vinte anos, convidou-me a fazer a apresentação da minha tese, no máximo em vinte minutos.
Cumprimentei os membros do júri, o público e o orientador, agradecendo-lhes por diferentes razões. Quase de imediato, senti a saliva a desaparecer-me da boca como que por magia. Parecia que tinha engolido um deserto inteiro. Felizmente, havia uma garrafa de água e um copo na minha mesa, mas eu não podia, pelo menos para já, começar a servir-me. Continuei a desbobinar a gravação com a naturalidade possível, sentindo-me segura e feliz por estar finalmente a deitar cá para fora aquele discurso tantas vezes ensaiado, pela última vez. A dada altura, achei que já podia abrir a garrafa. Admirei-me ao perceber que a minha mão esquerda tremia ligeiramente, enquanto vertia a água no copo. Fluida, pausada, mas sem hesitações, a minha apresentação da tese prosseguiu em modo de piloto automático, até que, antes de concluir, perguntei se estava a ultrapassar ou não o tempo estipulado. Faltavam quatro minutos, mesmo o que era preciso para eu acabar. E acabei.
O primeiro arguente foi convidado a intervir. Fez alguns elogios, mas depressa enveredou pela crítica cada vez mais contundente, acusando-me de abusar das citações, de escrever com um grau e um tom de crítica aos outros demasiado forte, falho em civilidade académica, de ser demasiado segura das minhas opiniões, como se só eu e a minha autora preferida fôssemos detentoras da razão. Estava claramente zangado comigo por eu ter citado o seu trabalho para o criticar. Desdenhou a forma como terminei a conclusão da tese, alegando que aí se via como eu era radical ao ponto de ser insensata.  Respondi-lhe com serenidade, acatando os seus juízos e agradecendo por me ajudar a crescer e a melhorar o meu trabalho. Mas refutei algumas das críticas e expliquei porquê. Penso que fui clara e convincente, pelo menos vi na expressão dos outros membros do júri alguma concordância com o que eu dizia. Dispensei os poucos minutos que me restavam para me defender, se o arguente estivesse de acordo, e andámos para a frente.
O segundo arguente foi mais simpático e menos defensivo, apesar de ser coautor do outro, na obra por mim criticada. Mas leu as suas seis extensas e rebuscadas perguntas, sugerindo que eu escolhesse quatro, instrução que eu ignorei, pois o orientador tinha-me dito que só teria de responder às que eu entendesse e para as quais, naturalmente, tivesse resposta. Comecei por explicar que o facto de ter lido relativamente depressa as suas longas perguntas tinha dificultado a minha apreensão das questões. Por isso, iria responder na medida do possível àquilo que fora capaz de captar. Ele aceitou com aparente agrado as minhas explicações. Também me abstive, quando terminei as respostas que consegui improvisar, de usufruir do tempo que me restava.
O terceiro arguente era aquele de quem eu esperava menos elogios, e foi afinal o que falou do meu trabalho com mais apreço e entusiasmo. Fiquei intensamente feliz quando o ouvi dizer que o último capítulo era o que mais lhe tinha tocado, pois é também o meu preferido, aquele que eu acho mais original e que para mim valeu mais a pena escrever. Fiquei igualmente agradada com o facto de ele ter achado que o terceiro era o menos feliz, o menos investido, porque eu sentia isso mesmo. E fiquei exultante quando ele resolveu contradizer o primeiro arguente, sustentando que a minha conclusão terminava da forma certa: assumindo o risco que era inevitável assumir. Estava eu nas nuvens, entre o alívio de saber que dali para a frente já não haveria nada a temer, e a alegria de ouvir tantos elogios ao meu trabalho, tomando notas das perguntas e das respostas que lhe poderia dar logo a seguir, quando ele me atira a última questão e eu a apanho como uma flecha que me acerta mesmo em cheio no coração: porquê um romance e não a poesia? Se eu até escrevi uma tese de mestrado sobre poesia...
Era fácil responder com lógica e serenidade. A razão era óbvia e não me custaria nada explicá-la de modo a que todos assentissem com a cabeça e pudéssemos avançar. Mas foi isso o que eu fiz? Não. A voz embargou-se-me, mal comecei a responder àquela pergunta aparentemente inócua. Em poucos segundos percebi que era inevitável: ia começar a chorar. E foi isso mesmo que aconteceu. Chorei de emoção, a partir daí, sempre que me referi ao romance que escolhi apresentar na tese, e eles ficaram especados a observar-me, decerto espantados com a minha quebra repentina. Onde estava aquela mulher tão serena e tão segura? Por que raio havia sido de repente substituída por uma rapariguinha emotiva, agarrada ao lenço que o marido lhe passou, de lágrima fácil e voz trémula? Poderia um texto fazer aquilo? Claro que sim. E ainda bem que aquele arguente, minutos antes, se havia referido à importância da reação emocional, da perceção sinestésica, da experiência imediata e sensorial da literatura. Eu era, afinal, a prova viva de que "a literatura faz coisas às pessoas"... como disse depois o orientador.
Daí para a frente, não houve mais perguntas, apenas elogios. Senti-me como uma pateta alegre, de olhos vermelhos e sorriso parvo, enquanto o quarto elemento do júri, uma professora que eu conhecia mal, e depois o orientador, me felicitaram por diversas razões. Só o primeiro arguente se manteve sempre sério, sabe-se lá com que pensamentos a ocuparem-lhe o espírito.
Quando o meu orientador se referiu ao incidente ("acho que nunca vi ninguém chorar de emoção durante as provas de doutoramento...") e insistiu no "mistério" que levou a que aquele romance me tivesse afetado de tal maneira, tentei explicar que o motivo provavelmente se prendia com o facto de terem sido muito especiais para mim os anos em que esse texto, juntamente com outros, foi alvo de atenção nas aulas de literatura que eu nunca mais pude dar e que recordo com imensa saudade. É caso para dizer que a emenda foi pior do que o soneto... quanto mais tentava explicar-me, mais a emoção tomava conta de mim. Mas consegui reunir calma suficiente para poder terminar esclarecendo que, ao contrário do que o orientador declarara ("fez a tese em condições difíceis, sem bolsa, trabalhando a tempo inteiro, nunca se queixou, sempre cumpriu os prazos"), na verdade eu tive muita sorte e não podia senão ter cumprido os prazos, visto que contei com a ajuda dos meus pais, como patrocinadores, e dos meus patrões, que me deixaram escrever a tese no horário de trabalho.
Fomos então convidados a sair para que o júri pudesse deliberar.
Ainda esperámos uns dez ou quinze minutos, conversando animadamente, rindo, comentando o sucedido, procurando perceber o que me levara a deixar saltar a tampa da caixa das emoções. Lentamente, fui descomprimindo o corpo e a mente. Quando voltámos para dentro, estava já calma outra vez. A presidente sorriu e revelou o veredicto do júri, dando-me os parabéns. Agradeci e fiquei parada, aliviada, apreciando o momento sem pressa, sem pensar. Mas a Secretária veio dizer-me que devia ir cumprimentar os elementos do júri. Levantei-me e fui, sem saber muito bem a quem me dirigir primeiro, nem como proceder ao cumprimento. Mas eles foram saindo de trás das mesas por ordem e ofereceram-me a cara, não a mão.
Terminados os cumprimentos, o meu marido perguntou se podia tirar uma fotografia. Claro, vamos lá então. Como é que ficamos? Assim? Está bom. Parámos e sorrimos, suspensos no espaço e no tempo, por uns breves instantes. Nada a ver, tudo a ver.
Lá estamos todos, para a posteridade. Pelo menos para a minha. Com ou sem fotografia.











1 comentário:

  1. Parabéns pela conclusão do doutoramento. E obrigado pela descrição do evento. Quase que me senti também ali, sentado a ouvir-te argumentar e a sentir o teu nó na garganta. Agora toca a escrever um romance, Srª Doutora.

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